"O que é Coronavirus?" "Perguntas e respostas sobre o Coronavirus" "Glossário do Coronavirus". Três meses após o estopim dessa pandemia que parou o mundo, ainda há muita dificuldade em compreender o que, afinal, essa doença e esse isolamento que estamos passando significam. São tantas notícias, pesquisas, pronunciamentos e, pior, tantas fake news, que nossa saúde mental fica fragilizada diante de tanto caos e da incerteza sobre o que fazer nesse período.
Na série Dawson's Creek (galera da geração Y pode se lembrar), o protagonista Dawson tem uma teoria maluca de que todas as respostas para os seus problemas podem ser encontradas num filme de Steven Spielberg. Abracei essa maluquice e, não sei se é porque a quarentena está me deixando com alguns parafusos a menos, essa ideia passou a fazer sentido na minha cabeça, porém de forma um pouco diferente: e se os meus problemas tivessem sua resposta em alguma música da banda Pink Floyd? Mais especificamente, e se tudo que está acontecendo nesse período da quarentena pudesse ser explicado pelo álbum Dark Side of the Moon?
Para quem não conhece, Dark Side of the Moon é o oitavo álbum da banda Pink Floyd. Ele foi um marco na história do rock, não só por ter sido um dos discos mais vendidos de todos os tempos, mas, também, por trazer de modo ímpar um tema específico: o ser humano. Nesse álbum, os integrantes David Gilmour, Roger Waters, Nick Mason e Richard Right nos mostram, através de uma mistura de melodias, letras e falas, o lado oculto do homem, nossa parte feia, tudo aquilo que guardamos para os outros não verem e liberamos no escuro.
Todas as músicas do disco parecem explicar exatamente as emoções despertadas nessa quarentena: perda, vazio, loucura, desespero, ansiedade... Dark Side é um álbum mundialmente conhecido por ser atemporal, afinal, as angústias do homem não mudaram tanto ao longo das décadas. Tempo, dinheiro, cobiça, egoísmo e loucura ainda fazem parte da rotina humana e, nesse período, principalmente, fazem-se muito presentes na nossa sociedade.
Eis, então, a narrativa dos fatos ocorridos na quarentena, explicados em um álbum. Acompanhem o raciocínio :)
“Speak to me” é uma introdução perfeita tanto para o álbum quanto para esse período. Nossa rotina não parou com as notícias do coronavírus, não sabíamos o que estava por vir. O coração batia ritmicamente, seguindo nosso dia a dia. Muito barulho, risadas e conversas; tantas coisas acontecendo, ao mesmo tempo em que havia a descrença de que aquilo se tornaria uma grande bola de neve. “Uma gripezinha”, foi o que disseram.
Logo depois, “Breathe (In the Air)”, com um grito desesperado logo no início, convida-nos a entrar na loucura do álbum e da quarentena, mas com certa calma. A melodia leve e melancólica da música nos traz uma sensação ambígua de paz e angústia. Estamos entrando em um momento difícil; porém, é importante lembrar que ainda estamos vivos, ainda estamos aqui. Por isso, “respire, respire no ar, não tenha medo de se importar.” Paralelamente, “olhe ao seu redor, e escolha seu próprio chão”: cabe a você decidir se cederá à insanidade ou permanecerá em equilíbrio. É compreensível cedermos à loucura no início, já que num dia estávamos seguindo nossa rotina normalmente e no outro nos encontramos isolados em nossas casas. Devemos nos lembrar, entretanto, do que é importante, “O quanto você vive e quanto você voa alto, Sorrisos você dará e lágrimas você chorará, E tudo que você tocar e tudo que você ver, É tudo o que sua vida sempre será.” Somos pó e sombras, um autor disse uma vez; temos que aproveitar enquanto estamos vivos. A resiliência, portanto, mostra-se essencial nesse momento, mas nem todos são fortes e nem todos acreditam. Assim, a música nos avisa: “Você corre para um túmulo adiantado”.
“On the Run”, por sua vez, traz os primeiros sintomas da quarentena na mente humana. Apenas com efeitos psicodélicos, vozes e barulhos rotineiros ao fundo, somos levados à reflexão acerca de tudo o que está acontecendo ao nosso redor. São mais de 25 mil mortes, estamos cercados de coisas ruins e a nossa casa de repente parece uma caixa de sapato de tão pequena que tornou-se para nos proteger do que se encontra fora dela. “Viva por hoje, amanhã se foi, hahahahaha”. Se antes já não era, o futuro tornou-se incerto.
Com essa mensagem de incerteza, iniciamos “Time”, uma das músicas mais famosas do álbum. A tensão criada nessa introdução ímpar atinge o nosso âmago e cria uma atmosfera sombria que talvez represente a realidade de alguns nesse período de quarentena. Dúvida, perplexidade e insegurança em relação ao que acontecerá nos próximos meses, quando voltaremos à normalidade. Toda a letra da música resume nosso isolamento, principalmente para aqueles que estão ociosos, como eu, que não estão trabalhando, estudando ou não têm vontade de fazer nada a não ser passar o dia olhando para o teto. Estamos “contando cada momento de um dia morto, gastando à toa e jogando no lixo as horas, descontroladamente, Perambulando de um lugar para outro nossa sua cidade natal, Esperando por algo ou alguém que te mostre o caminho”, quando, na verdade, a única pessoa que pode tomar essa iniciativa somos nós mesmos. Desse modo, a música traz a noção de que cada dia vai ficando mais curto. A certeza de que estamos envelhecendo, paralelamente à incerteza sobre o futuro que nos aguarda, toma conta do nosso ser. Planos que foram cancelados, meia página de linhas rabiscadas, toda a nossa vida adiada por tempo indeterminado. Estamos esperando em um quieto desespero, numa maneira mundana de agir.
Com esse choque de realidade que nos atingiu em “Time”, chegamos ao ápice do desespero em “The Great Gig in the Sky”. Tal música é tão somente uma metáfora para nosso grito angustiado que estava preso na garganta. Com sua voz incrível, Clare Torry nos faz embarcar nesse surto, nessa ansiedade e no desespero de estar preso em casa, impotente. No final de “Great Gig in the Sky”, entretanto, Clare Torry acalma sua voz, trazendo um tom mais melancólico à música, já que, logo após o surto, temos que nos tranquilizar para nos concentrar em falar sobre algo mais importante: dinheiro.
“Money”, é o momento em que percebemos o colapso da economia e mostra a face mais crua do ser humano frente ao desafio econômico que enfrentamos nesse momento. Ao mesmo tempo em que expõe o egoísmo do homem, (“Dinheiro, é um golpe, Não me venha com essa besteira de que fazer caridade é bom”), tanto a música quanto a quarentena também põem em xeque a moralidade daqueles que defendem a igualdade de bens: “Dinheiro é um crime, divida de modo justo, mas não pegue um pedaço da minha torta.” O brilhante solo de David Gilmour quase ao final da música traz esse embate que estamos vivendo entre pensar no coletivo ou no individual. Posso pôr em risco outras pessoas para poder sustentar a minha família? Quem deve morrer para que eu possa viver? Que vida eu estou arriscando ao me expor ao vírus? Qual o valor do dinheiro?
Essas perguntas são respondidas em seguida por “Us and Them”. De modo ímpar, a melodia em um tom mais melancólico e baixo representa nosso ser tomando consciência da solidão frente à quarentena. O toque, o abraço, o beijo, nunca se fizeram tão substanciais quanto agora. O contato humano limitou-se apenas àqueles que moram conosco e a solidão bateu à porta. "Nós e eles, E afinal somos apenas homens comuns. Eu e você, Só Deus sabe que não é isso que teríamos escolhido fazer." É nesse momento, então, que nos damos conta do quanto estamos sozinhos e do quanto a morte parece iminente. "Morto e destruído, Não dá para evitar mas tem muito disso nesta situação. Com ou sem, E quem há de negar que essa é a razão de toda a briga?". Assim, notamos a fundamentalidade daqueles que estão ao nosso redor, seja para amar ou para odiar, precisamos uns dos outros. Afinal, se ninguém no mundo se importa com você, você sequer existe?
Após todas essas crises existenciais levantadas na quarentena, somos, enfim, levados à loucura (se é que antes já não estávamos loucos) mediante “Any Colour You Like” que, assim como “On the Run”, reflete a passagem de um estado psicológico ao outro. Dessa vez, porém, já estamos com todos os sintomas da quarentena em nossa mente. Em três meses, vimos pessoas queridas se transformando em estatísticas e discursos egoístas daquele que deveria nos proteger. Então, nos revoltamos e fomos tomados pela frustração, angústia, solidão e ansiedade, chegando ao limite da nossa saúde mental. Surtamos. Estamos todos loucos, com uma espécie de dano cerebral.
“Brain Damage” representa o agora, o resultado do grito desesperado, da tomada de consciência da passagem de tempo e da solidão, da fome humana por dinheiro, da incerteza do futuro, da perda da sanidade. Estamos, realmente, com um dano cerebral. "Os lunáticos estão na minha casa. Devemos mantê-los na linha". Nós nos tornamos os lunáticos. “Há alguém na minha cabeça e não sou eu.” Os medos tomaram conta do nosso corpo, a ansiedade falando cada vez mais alto. O significado ambíguo da letra nos leva a refletir sobre o nosso comportamento e até que ponto a nossa saúde mental suporta assistir à nossa impotência frente a um cenário tão caótico. Em meio a isso tudo, entretanto, não estamos sozinhos: “E se sua cabeça explodir com mau presságio também, Eu verei você no lado escuro da lua”.
Por fim, complementando “Brain Damage”, “Eclipse” é a obra-prima do álbum que transpõe o nosso futuro. É o fim de um ciclo, a certeza de que a história tem início, meio e fim. Apesar de a música trazer um final meio sombrio, podemos reinterpretá-lo. “Tudo o que é agora, Tudo o que já foi, Tudo o que já vem, e tudo debaixo do sol está sintonizado, mas o sol é eclipsado pela lua”. O que parece é que no fim tudo é obscurecido por nossas emoções sombrias, tal como o sol é eclipsado pela lua. O fenômeno exemplificado na música é o eclipse solar, que ocorre quando a lua interpõe-se entre o Sol e a Terra, projetando a sua sombra sobre o planeta. De fato, a luz solar é ocultada pela lua, mas isso não significa que o sol não brilhe mais. Desse modo, temos a certeza de que por trás de toda agonia, descrença e aflição, existe uma luz por trás disso, apenas esperando o momento certo para aparecer. O eclipse é só uma fase.
Finalmente, ao percebermos que estamos vivendo em um ciclo, temos a convicção de que uma hora ele terá um fim. Em algum momento, ainda que indeterminado, estaremos de volta às nossas rotinas que, por mais que pareçam enfadonhas e monótonas, nunca fizeram tanta falta. Em breve, “respiraremos no ar, sem medo de se importar”. Eu sei que perdemos muito nessa quarentena, mas, pelo menos, aprendemos a importância de “viver por hoje, pois o amanhã se foi”. Além disso, mesmo que tenhamos perdido muito tempo “contando cada momento de um dia morto, gastando à toa e jogando no lixo as horas”, hoje temos mais consciência sobre como cada momento é valioso. Sim, “dinheiro é um crime”, capaz de expor a pior face do homem, mas situações drásticas pedem medidas drásticas, não é mesmo? Só precisamos tomar cuidado para não acabarmos sozinhos, pois “nós e eles, E afinal somos apenas homens comuns”, precisamos uns dos outros. Mas não se preocupem. Como eu disse, o eclipse é só uma fase, passará. E, quando esse momento finalmente chegar, “se sua cabeça explodir com mau presságio também, Eu verei você no lado escuro da lua”.
Brilhante!
Perfeita