A memória fotográfica de B é excelente. Ela se lembra de coisas que aconteceram quando era pequena, conversas detalhadas e até o local exato de determinados acontecimentos. No entanto, não era de propósito. B é muito boa com rostos e sempre foi muito observadora (a vantagem de ser introvertida e não gostar muito de conversar), preferia trabalhar a escutatória em vez da oratória.
O problema é que nem todo mundo é assim… então, se ela dizia para alguém "fizemos aula de redação juntas na época da escola", "eu te emprestava o meu gameboy quando estávamos no turno inverso", ou "éramos da mesma turma de história do direito, você costumava sentar no canto esquerdo da sala", as pessoas a olhavam como se ela fosse um alienígena, por lembrar de coisas que nem elas mesmas se recordavam.
Por isso, depois de muitas sobrancelhas levantadas e olhares suspeitos sobre a sua memória fotográfica excelente, B decidiu parar de "assustar" as pessoas com informações passadas que compartilhou com elas. Já tinha poucos amigos, não precisava de mais uma razão para afastar as pessoas para além da sua falta de traquejo social.
É decepcionante perceber que não podemos ser quem realmente somos na presença de determinada gente. Não que a opinião alheia importe, mas importa… Não conseguimos nos desfazer disso. Por que B se incomoda tanto com o que os outros pensam? Ela tenta ser como suas colegas de faculdade, mas nunca é o suficiente. Elas são extrovertidas e todo mundo parece adorá-las devido às suas "personalidades fortes". B também não é forte? O que precisa fazer para deixar isso claro e as pessoas a adorarem?
B parou de falar sobre as lembranças que tinha das pessoas que conhecia. Até que (re)conheceu um menino.
A única vez que se falaram foi no mico do terceiro ano. Eram da mesma escola, do mesmo ano, porém nunca haviam conversado. O colégio era pequeno, então tinha consciência dos colegas do seu ano, mesmo que não os conhecesse realmente.
Era o caso desse garoto, W. Apesar de não terem trocado uma palavra durante os 3 anos em que estudaram juntos, no dia do mico, prestes a se formarem, finalmente se falaram.
Mas foi só naquele dia. Um dia entre os outros tantos que viveram na escola. Depois disso, um aceno rápido pelos corredores, mas nada marcante. Ele não se lembraria dela, certo?
“B, não sei se você lembra, mas durante o mico do terceiro ano, nós dois fomos parar na sala da direção porque atravessamos a grade para pular na piscina da escola”.
Não soube o que dizer. Geralmente, era ela quem estava nesse papel de relembrar a alguém fatos que aconteceram no passado, não sabia como era estar do outro lado (talvez agora entendesse como as pessoas com quem falava se sentiam). Ficou o olhando como se fosse um alienígena, mas não pelos mesmos motivos pelo qual a encaravam. Estranhou pois estava surpresa de ele também recordar do breve momento que compartilharam juntos, mesmo que, à primeira vista, não parecesse significativo.
“Eu lembro sim. Sua mãe apareceu na sala da direção e deu risada pela razão pela qual estávamos sendo suspensos.”
“E seu primo foi te buscar. Ficou reclamando porque teve que sair do trabalho para estar lá!”
“E o Diretor J não parava de dizer o quanto a nossa conduta era inaceitável para ‘jovens brilhantes.’”
“E nós dois segurando a risada porque aquilo tudo era muito ridículo.”
“E você não segurou a risada no final”
“E você esperou que saíssemos da sala para começar a rir.”
[..]
Não sou como B, minha memória é de peixe. Não lembro do que conversaram depois disso, ela estava tão empolgada que me contou tudo rápido. O que me lembro é que, depois de sair com W, B nunca mais se preocupou em parecer estranha novamente. Era ela mesma, a “alienígena”, com ou sem a presença de alguém tão especial quanto ela, que, inclusive, a adorava.
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